terça-feira, junho 16, 2009

O meu cronista favorito, de quem não perco um texto que seja, José Manuel dos Santos perdeu há dias a sua mãe. E decidiu escrever este texto que tem passagens maravilhosas. Os meus pesames ao homem e a minha homenagem ao cronista...

A minha mãe era o absoluto da minha vida. Na aliança com ela não havia 'ses', 'talvez' ou 'depois'. O amor, ao mesmo tempo lúcido e louco, que, em todos os instantes, nos entregava, a mim e à minha irmã, iluminou a nossa vida e é-nos agora um sol interior. Sabemos que o melhor que somos vem dela. Vivia inclinada para nós, à nossa escuta: dava-nos um cuidado sem descanso, uma atenção sem intervalo. Mas detestava sentimentalismos exibidos. Fingia que não queria mimo, mas ficava maior com ele. Havia nela uma autoridade natural perante o mundo e os outros. Em casa, era uma rainha sentada no seu trono, a quem toda a gente reconhecia e prestava homenagem. O meu pai adorava-a. As amigas adoravam-na. Os filhos e os amigos dos filhos adoravam-na.
Era dona de uma inteligência muito acima da sua instrução: rápida, ágil, astuta, concisa. Tinha uma graça céptica e jovial, que a velhice aguçou. Percebia tudo antes de toda a gente: da política à psicologia. Usava um espírito crítico insubmisso e ilimitado. Nunca se rendia! Gostava de histórias e de segredos. Ao contrário do meu pai, gostava de futebol - e era do Benfica. Via os jogos com paixão e impaciência. Era boa, sem ser 'boazinha'! Era justa e atenta a quem precisava de ajuda. Era nervosa e resistente, voluntariosa e fatalista, teimosa e perspicaz, corajosa e por vezes obsessiva. Era muito frágil e muito forte.
Esta é a hora em que me lembro de todos os meus dias, desde o nascimento, pois ela está em todos eles. Às vezes, está neles mais do que eu. Guardo nos meus olhos o seu rosto belo. Nos meus ouvidos, a sua voz jovem. Guardo no meu corpo a memória das suas mãos. Quando, todas as manhãs, subia da minha casa à sua para a saudar, ela compunha-me sempre a gravata ou a gola do casaco. Era a sua maneira de me fazer uma festa. Conservarei até ao meu fim esse seu gesto (esse seu jogo), que acrescentava o meu corpo de força e de certeza.
Aos 85 anos, estava activa e lúcida como poucos. Fazia a sua vida como sempre fizera. Há dois meses, uma dor numa perna revelou uma 'fractura espontânea' (sem queda) do colo do fémur. Foi operada e correu bem (Hospital de São Lázaro). Quando já estava em casa a começar a andar, um trombo impediu-lhe a artéria da outra perna e foi de novo operada (Hospital de Santa Marta). Sucederam-se complicações: esteve a morrer, mas foi possível salvá-la. Melhorou e, quando estava de novo em casa, há apenas um dia, apareceu uma infecção que finalmente a venceu (Hospital dos Capuchos e de São José). Sofreu muito durante este tempo. Hora a hora, sentia-se mais cercada. Dizia: "Já não tenho lágrimas para chorar." Falava da morte, agarrada à vida. Depois da vida, agarrada à morte. Durante estes dias da doença, da recuperação, da agonia, conheceu nos hospitais o horror e a desatenção, mas também o cuidado e o carinho. Mas estes hospitais, mesmo aqueles que são os melhores, já não servem e é imperioso que deixem de servir. Por excelentes que sejam os cuidados médicos aí prestados (e, ao contrário da Urgência, a UCIP, cuidados intensivos de São José, é um exemplo de rara qualidade), estes velhos e inadequados hospitais são inaceitáveis pela humilhação que fazem aos doentes e aos que neles trabalham. Nestes meses (que nos acrescentaram uma anterior experiência de anos com a doença do meu pai), eu e a minha irmã vivemos nos hospitais ao lado da minha mãe e poderíamos fazer um relatório maior que o de uma comissão especializada.
Nesta Primavera que se me tornou Inverno, a minha mãe morreu, e eu sei que a sua ausência põe fim ao meu reino. A partir de agora, estou no exílio, por mais feliz ou dourado que possa ser. A sua morte é, de todas as coisas do mundo, a que menos me é alheia: deu-se também em mim. É-me, por isso, ao mesmo tempo impensável, insuportável e irreal. Para dar a essa morte a grandeza da sua vida comum e do seu amor por nós, digo poemas que falam das mães: de Herberto, de Sophia, de Eugénio.
E de Torga: "Mãe/ Que desgraça na vida aconteceu,/ Que ficaste insensível e gelada?/ Que todo o teu perfil se endureceu/ Numa linha severa e desenhada?// Como as estátuas, que são gente nossa/ Cansada de palavras e ternura,/ Assim tu me pareces no teu leito./ Presença cinzelada em pedra dura,/ Que não tem coração dentro do peito.// Chamo aos gritos por ti - não me respondes./ Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio./ Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes/ Por detrás do terror deste vazio.// Mãe:/ Abre os olhos ao menos, diz que sim!/ Diz que me vês ainda, que me queres./ Que és a eterna mulher entre as mulheres./ Que nem a morte te afastou de mim!"
in Unica.

7 comentários:

Cat disse...

Eu sabia que não devia ter lido...

esse disse...

Palavras que marcam ...

Francisco del Mundo disse...

Cat, há sempre saudade mas a alegria de a ter vivido...
Beijo

Francisco del Mundo disse...

esse, ele escreve como ninguém..
Beijo

Livros em 2ª Mão disse...

Mãe é mãe... Também eu tenho saudades...

Francisco del Mundo disse...

Livros, estou certo que ela está no teu coração.. Bem guardada...
Beijo

S* disse...

Que declaraçao de amor linda. O amor mais forte de todos.