sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Algumas pessoas tem dito que tem saudades dos meus textos. Eu também tenho saudades de escrever, mas quando eu leio pessoas que escrevem melhor que eu, o melhor é transcrever e saborear. José Manuel dos Santos na UNICA...

Desemprego

A casa está deserta. Nela, só ele e o som muito baixo da sua respiração. Acordou cedo, à hora do costume, mas, como agora não tem para onde ir, deixa-se ficar na cama. Fecha os olhos. Tenta adormecer de novo. Não consegue. Tenta outra vez. Continua a não conseguir. Estica o corpo entre os lençóis, muda de posição, volta a enrolar-se sobre si, mas o sono não chega. Enerva-se com isso e enerva-se ainda mais com o nervosismo que isso lhe causa.
Respira fundo. Espera o sono. Deixa-se estar naquele intervalo entre a inconsciência e a consciência dela. De repente, parece que vai adormecer, mas o corpo insubordina-se, não acompanha o seu desejo, não obedece à sua vontade. Dizem que o sono em que se cai é um abismo a que se desce, fundo e negro. Neste caso, o abismo está ao contrário: é não conseguir descê-lo até ao fim, é ser forçado a subir nele, é ser empurrado para cima, até à claridade dura da vigília. Continua a esperar o sono. Tem uma perna e um braço dormentes. Procura outra posição. Faz um esforço para não pensar naquilo em que não consegue deixar de pensar. Está a pensar naquilo em que não consegue deixar de pensar. O seu pensamento é um texto com uma sintaxe adversa, em que as palavras estão fora do lugar, paralisando-se umas às outras, atropelando-se, devorando-se, tornando-se a mesma, num eco inextinguível. Texto sujeito a uma pontuação opressiva, que se não deixa dominar, que aparece quando se não quer. O seu pensamento é um texto escrito por um computador selvagem que escreve ao mesmo tempo que ele, por cima da sua escrita, contra a sua escrita.
O sono não vem. Irritado, dá voltas na cama. Volta a dar voltas na cama. Está cansado. Há meses que está cansado. Agora, que tem todo o tempo para descansar, não consegue descansar. Deita-se cansado, levanta-se cansado. Faz perguntas ao corpo e o corpo não responde. Dá-lhe ordens e ele não obedece. Foge-lhe para escapar à sua tristeza, ao seu tédio, ao seu torpor: ausenta-se, nega-se a ser corpo, revolta-se. Está cansado. Dá voltas, continua a dar voltas.
Procura um pensamento mais forte que o desvie daquele que o persegue, que o ataca, que o submete. Imagina um corpo que seja o destino do seu corpo. A mão desce do peito para a barriga, da barriga para o sexo. Pára aí. Mexe aí. Pressão da pele contra a pele, como se a mão estivesse sobre um sexo que não fosse dele. Ou como se o sexo fosse dele e a mão fosse de outra pessoa. Agita a mão: lentamente; depois, rapidamente. Não consegue. Falha. Volta a tentar: rapidamente; depois, lentamente. Procura um ponto, na linha do passado, que lhe aumente o desejo. Fixa-o. A memória do seu corpo torna esse ponto nítido. Corre até ele.
Recupera as imagens e os sons. Revive os movimentos, as paragens. Retém os silêncios, os murmúrios. Lembra a aproximação, o enlace, a permanência, o desenlace. Recorda o princípio e o fim. Agita a mão de novo, velozmente. Parece que está a conseguir. Mas há qualquer coisa que se nega. Há qualquer coisa que se sobrepõe. Fica inquieto, perturbado, assustado, ansioso. Desiste. Tem vergonha. Afasta-se do seu corpo, retribuindo-lhe a distância a que ele o pôs: repudia-o, falha-o. Põe as mãos espalmadas sobre o lençol.
Volta a tentar dormir. Insiste. Não consegue. Agita-se, dá voltas na cama. Dói-lhe tudo, está exausto, cansado do cansaço. Não quer abrir os olhos. Pensa no ontem, pensa no amanhã, mas não consegue sair do hoje. Como se, em vez de andar, marcasse passo: cansado de andar sem andar, fatigado de estar no mesmo lugar, cansado de parar sem parar. Sente que os olhos humedecem. Tem vergonha da sua inutilidade, da sua humilhação, da sua impotência. Procura no sono um esconderijo. Não consegue dormir. Dói-lhe tudo, de uma dor inteira e dividida, interior e exterior, côncava e convexa. Abre os olhos. Olha o tecto.
Num salto, levanta-se da cama. O quarto está frio e ele arrepia-se. Veste uma camisola. Dirige-se à casa de banho. Olha a sua cara no espelho. Vê a barba grisalha, suja, ainda mais grisalha e mais suja do que o cabelo. Deixou de fazer a barba. Sabe que hoje, amanhã, depois de amanhã, também a não fará. Desvia o olhar de si, da sua desistência, do seu fracasso. Dá meia-volta, vira as costas ao espelho. Aponta o sexo cansado à sanita e mija, mija muito. Ouve o som do mijo. Ouve-o - ele é o único som propício nestes dias.

2 comentários:

Anónimo disse...

É bom sim senhor mas ainda assim a malta gosta dos TEUS!

Francisco del Mundo disse...

Noivo, está bem, mas ele escreve dez vezes melhor...:D
Abraço