terça-feira, outubro 09, 2007

Ontem deixei um vídeo onde palavras não eram precisas... Pois bem, hoje transcrevo um texto de José Cutileiro que vinha no Expresso de Sábado. Quero que leiam e me digam o que pensam...

Viveram uma das maiores histórias de amor de que há memória. Depois de 58 anos de vida em comum, contrariaram o destino e não sobreviveram à morte um do outro.

Dorine e André Gorz, nascidos a poucos meses um do outro, ele na Áustria e ela em Inglaterra, que se tinham conhecido em Lausanne na noite de neve de 23 de Outubro de 1947 quando ele a convidara para irem dançar e desde essa noite nunca mais se tinham separado, morreram juntos na passada noite de 23 para 24 de Setembro, na sua casa no campo em Vosnon, perto de Troyes, no departamento de Aube, para onde tinham ido viver há vinte anos, quando o filósofo se reformara da sua actividade jornalística e editorial em Paris, e onde continuavam até há poucos meses - até à evolução da doença degenerativa de Dorine, complicada pelo aparecimento de um cancro - a receber amigos e peregrinos vários: jovens dirigentes políticos e sindicais, universitários preparando teses sobre os seus livros, que vinham conhecer e venerar uma das figuras mais originais da intelectualidade francesa do pós-guerra e que era, além disso, um homem encantador, a metade pública de um casal de que toda a gente gostava e cuja felicidade fazia a inveja de alguns. Na noite de 23 ele pregou na parte de fora da porta de entrada da casa, que dava sobre a relva do jardim, um papel com um recado simples: "Prevenir a polícia - Há cartas escritas". Depois subiu, deitou-se ao lado da mulher e tomaram os dois os comprimidos precisos para não tornarem a acordar. De manhã, uma vizinha amiga, inquieta por André Gorz lhe ter dito dias antes, a chorar, estar desesperado porque o sofrimento de Dorine aumentara muitíssimo, veio ver como estavam as coisas e levou à polícia o papel e as cartas para entrega a próximos do casal.

O último livro de Gorz, publicado em Setembro do ano passado, não fora como os anteriores um ensaio histórico-filosófico ou uma investigação sociológica mas uma longa carta de amor. Intitulado 'Cartas a D.. História de um amor', acabava assim: "Cada um de nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Temo-nos dito que se, por absurdo, tivéssemos uma segunda vida, quereríamos passá-la juntos". A um jornalista que lhe perguntara, quando o livro fora publicado, se, como Arthur Koestler (autor de 'O Zero e o Infinito') e sua mulher, ele e Dorine pensavam deixar o mundo juntos, respondera: "Falámos desse suicídio a dois quando soubemos. Mas era a história deles. Nem eu penso nisso nem ela. Dorine e eu vivemos o infinito de cada instante, sabendo que é finito, e está bem assim. Para nós o presente chega". O livro começava: "Vais fazer oitenta e dois anos. Perdeste seis centímetros de altura, só pesas quarenta e cinco quilos e continuas bela, graciosa e apetecível. Vivemos juntos há cinquenta e oito anos e amo-te mais do que nunca. Sinto outra vez no fundo do meu peito um vazio devorador que só o calor do teu corpo contra o meu pode encher".

André Gorz nascera Gerard Host (era Gerard que Dorine lhe chamava) em Viena, filho de pai judeu que se converteria ao catolicismo e de mãe católica, de família dada às letras. Quando a Alemanha nazi e a Áustria se juntaram em 1938, a mãe mandou-o para a Suíça, onde se formou em engenharia química, apátrida mas ao abrigo de "pogroms" durante os anos da guerra. Fascinado por fenomenologia e existencialismo, conhece Sartre em Lausanne em 1947 e esse encontro é capital. Em 1949 vai para Paris, escreve no 'L'Express' e vem a ser co-fundador do 'Nouvel Observateur' sob o nome de Michel Bosquet. Entretanto é responsável editorial de 'Les Temps Modernes' e pratica filosofia, aplicada a reformas revolucionárias, no caldo de cultura franco-alemão marxista e existencialista, animado também por Marcuse e outros próceres da escola de Frankfurt, a cujos efeitos deletérios poucos, além de Raymond Aron, escaparam em Paris. Gorz repudiou muito disso, interessou-se por ecologia e fez reflexões estimulantes sobre o trabalho nas sociedades pós-industriais - porventura o seu melhor legado intelectual.

Mas mais do que isto foi o amor de Gerard e Dorine, e por ele serão lembrados.

11 comentários:

Unknown disse...

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Um amor desses, acredito, não se encontra por aí todos os dias. Sequer a genial intelectualidade daqueles.

Gostei,
Abraço! ^^

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Julieta disse...

Acho que todos sonhamos com um amor assim, mas poucos temos compreensão e o amor suficiente para o viver.
É linda demais esta história real de amor.

Beijinhos carinhosos

NickyBlue disse...

Há forma de saber se seremos iluminados o suficiente para viver uma história assim?

Anónimo disse...

Acho lindo, mas inverosímel nos loucos dias que vivemos, cada vez mais individualistas, exigentes, apressados..
Mas acredito no ser humano, o partilhar é algo de sublime quando estamos tão bem com essa pessoa, que nos esquecemos onde terminamos nós e ela começa...pelo menos enquanto dura! Beijos ;D

Anónimo disse...

Também li o artigo no expresso e faz-me pensar na grandeza de um amor assim.

Apesar do mundo de hoje, eu sonhar que um dia encontrarei alguém que me faça amar assim, fico feliz porque tenho casais amigos e conhecidos onde encontro essa cumplicidade, esse viver a dois de uma forma simples e maravilhosa.

Por isso, só temos que acreditar no amor.

Francisco del Mundo disse...

diannus do nemi, muito bem-vindo... Não é fácil encontrar um amor assim nos dias de hoje mas nunca se pode deixar de acreditar...:D
Abraço

Francisco del Mundo disse...

umabel, bem-vinda...:D Parte de nós estarmos de braços abertos para o receber...:D
Beijo ternurento

Francisco del Mundo disse...

nickyblue, há.. Sermos sempre nós mesmos e estarmos de coração aberto para o mundo...:D
Beijo

Francisco del Mundo disse...

just, deixar de acreditar no amor?? não se pode... Pode-se duvidar ligeiramente mas temos de acreditar! Se não perdemos a humanidade...:D
Beijo

Francisco del Mundo disse...

maria, eles existem... E por vezes calha-nos a nós...:D
Beijo

NickyBlue disse...

Não utilizaram essas exactas palavras mas hoje disseram-me quase o mesmo... "Tens de estar disponível para os outros"...