sábado, janeiro 10, 2009

Num novo ano não há nada como um texto sobre começar de José Manuel dos Santos, no Expresso.

"Já não temos começos, diz George Steiner ouvindo os vários sons do fim que formam hoje a voz mais alta da nossa cultura. Há um ar saturado de cansaços, esgotamentos, abolições e estertores. Tudo é tarde. Mas, entre tantos ocasos, decadências, decomposições, desistências e derrotas, o tempo persiste e o Novo Ano começa. O seu começo é como a grande capitular que agiganta o J inicial desta crónica, tornando-o uma sombra que a ilumina. Numa hora em que o desespero diz à esperança para recuar, negando-lhe o rosto e parando-lhe o passo, a memória e a observação ensinam-nos que, a seguir a um crepúsculo que anoitece, vem um crepúsculo que amanhece.

Sabemos que estamos num fim e, por isso, procuramos tanto os começos: do universo, da vida, da mente, da cultura, da história, da sociedade, da linguagem. Esta consciência do fim não é nova, embora a sua forma e o seu favor o sejam. Muitas das grandes obras do Ocidente fizeram do fim a água de Narciso onde reflectem a sua face de exaustão ou de êxtase. Das tragédias gregas ("Este é o fim onde esta acção acaba", Medeia, Eurípedes) a Shakespeare ("O tempo tornou-me um minucioso relógio/ e minutos são todos os meus pensamentos", Ricardo II), de Kafka ("A esperança é abundante, mas não é para nós") a Eliot ("No meu princípio está o meu fim. Sucessivamente/ Casas elevam-se e caem"), o fim como destino, escolha, ameaça, sentença, prenúncio, medo, esperança ou experiência esteve sempre presente no seu clímax queimado. Mas essa presença nunca anulou o grande prestígio do começo. Platão afirma que a origem é a nobreza maior de tudo o que é natural e humano. E, na Bíblia, do primeiro ao último livro, tudo é começo. A sua primeira palavra, a do "Livro do Génesis", é a do começo: "No princípio, quando Deus criou o Céu e a Terra." E uma das suas mais altas, a do "Evangelho de São João", é-o também: "No princípio, era o Verbo." Mas mesmo o "Apocalipse", que diz o fim do tempo, dá as suas últimas palavras a uma vinda, a um recomeço.

Às vezes, gosto de dividir os poetas ente os do começo e os do fim. Sophia e Cesariny são poetas do começo. Sophia declara: "Eu falo da primeira liberdade/ Do primeiro dia que era mar e luz." Ou canta: "Eras o primeiro dia inteiro e puro/ Banhando os horizontes de louvor." E a Revolução do 25 de Abril, no poema com que a celebra, é um começo que se segue a um fim, um amanhecer que sucede a uma noite: "Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo." Cesariny afirma num poema-colagem de um único grande verso: "Ama como a estrada começa." E tudo parece dito.

Pessanha e Pessoa são poetas do fim. Diz Pessanha: "Desce por fim sobre o meu coração/ O olvido. Irrevocável. Absoluto./ Envolve-o grave como véu de luto./ Podes, corpo, ir dormir no teu caixão./ A fronte já sem rugas, distendidas/ As feições, na imortal serenidade,/ Dorme enfim sem desejo e sem saudade/ Das coisas não logradas ou perdidas." Ou: "Cessar... não mais te ver/ Como uma luz se apaga..." Em Pessoa, "Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro" e "...já a primeira pancada/ tem o som de repetida".

Outros há que começam a acabar e acabam a começar. Almada Negreiros começou a gritar "Morra o Dantas, morra!" e acabou a inscrever a palavra COMEÇAR na pedra de um painel. Na demanda que fez da relação nove/dez, do "ponto da Bauhutte" e do cânone, procurava a reversibilidade do passado e do futuro. Almada é o funâmbulo que está sobre o arame a olhar o tempo - às vezes, de cabeça para baixo.

O ano começa e sabemos que este começo é o de uma viagem pelos mares da tormenta. Assim, só resta dar a esta expedição que nos leva um movimento de procura - aquela que descobre, no fim, o depois de um novo começo, que um dia será um novo fim, que outro dia será um novo começo. Da grande amurada do mundo, desenrolemos a corda que une os dois crepúsculos, o que anoitece e o que amanhece, e façamos, nietzscheanamente, do nosso andar sobre ela e sobre o seu abismo a audácia que dança.

O ocaso de um ano é o alvorecer de um outro, naquele ponto da linha da noite em que o fim e o início coincidem. Será esta hora a vigésima quinta, ou já é a primeira?
"

2 comentários:

Erotic Spirit disse...

Like this post a lot.
End and start. Think its within us, every second on the clock tick us closer to our own end and we deal with that certainty by hoping and praying on a new start.
And that's life with an expiration date

:)

Francisco del Mundo disse...

Erotic, exactly...:D
Kiss